Como um lugar que se constrói
Uma paisagem é muitas vezes uma construção. Se demorarmos o olhar sobre um lugar, ele pode passar a ser para sempre nosso. Fica como uma parte indizível da nossa história. Um campo indiscutível das nossas emoções secretas.
Mas convenhamos, esses lugares não existem fora de nós. São uma ocasional mistura de planos fixos e em movimento, de pormenor ou de distância. De sol e de chuva, de vento e outros mistérios.
Os meus lugares secretos, são sempre os lugares que já foram, irrepetíveis e não visitáveis, porque quando se volta, se chega com a memória e ela é inimiga do encantamento.
Nos desenhos de Beatriz Horta Correia, eu sinto o olhar de quem procura, de quem decidiu que a busca é um meio e não um fim.
Por vezes há horizonte, noutros casos fixamos o que nos está muito perto, ou melhor, o que nos é mais próximo e urgente. As formas são lugares imprecisos, porque não estão decididos. São uma metamorfose do que é e do que foi ou do que talvez possa ser. Uma espécie de indisciplina de sentidos.
Claude Lorrain, na sua “Pastoral”, acentua pela luz a verdade de um lugar que só ele conheceu. Assim se decidiu Antoine Watteau, no seu “Embarque para Cítera”, onde a viagem foi o pretexto para conhecer os viajantes.
Não há melhor lugar para estar, como aquele que desejamos ser a cada instante da nossa viagem.
Uma linha quebrada, um passo em falso, um trilho na lama, uma réstia de luz, devem sempre ser a consequência de um esforço resoluto em encontrar o que só nós poderemos ver.

Francisco Clode Sousa, um dia de Abril de 2007


A poética da memória
Como bem notou Jonah Lehrer, antes mesmo de a neurociência ter descoberto que a memória era uma composição com aspectos muito imaginativos, já Proust o sabia. Também Beatriz Horta Correia o sabe. É disso exemplo a presente exposição, Branco Silêncio, nome inspirado por alguns dos conjuntos que integram a escolha de obras patente na Galeria Gomes Alves, neste fim de Inverno. Com um grande painel composto por dezoito desenhos, e dois desenhos intitulados as palavras são como o vento, completam as propostas da artista.
Aparentemente próximos, estes recortes de paisagem, ou de quase paisagens, fazem-nos buscar o referente não no que vemos, mas num outro lugar. Num primeiro instante, olhamos para estas obras como se estivéssemos a ver árvores, nuas de folhas, através de uma vasta janela. Lá fora, o mundo é composto de ténues linhas, preenchidas a branco, numa luz opaca ou transparente, que joga com os nossos olhos e ilude a perspectiva. Paisagem verosímil, em tempos invernosos. Como se um denso nevoeiro tivesse pousado sobre o dia, tudo o que vemos lá fora está coberto de uma bruma que tudo envolve. Não há ponto de fuga. E, neste lugar benévolo, tudo o que vemos é sedutor, levando-nos pela mão com o convite ao tempo vasto, ao olhar que se demora e enevoa. Ao olhar que se debruça na memória.
Aqui chegados, percebemos que o espaço que a artista representa só é passível de ser visto depois de ser desenhado ou pintado. Ou seja, apenas existe como evocação (quase apetece dizer invocação, convocação), como reflexo de uma imagem mental. De uma imagem perfeita, cristalizada no tempo e sem pré-existência no mundo real.
Por isso, as paisagens de Beatriz Horta Correia não são miméticas (elas não são tomadas de vista, aspectos do mundo natural, re-presentações de um real existente, mas reminiscências resultantes de experiências sensíveis). De modo mais claro: porque ela já passeou entre muitas árvores, porque as árvores e os seus ramos, tomados pelo vento ou cingidos em quietude, há muito se vêm entrelaçando na sua mente, ela pode agora desenhá-las e envolvê-las na sua luz pessoal, reminiscente.
Os troncos nus, igualmente brancos, de um branco que, embora de velatura é mais forte do que o do fundo, e que mantém legíveis os cruzamentos das linhas de contorno dos ramos, tornados directos e discretos exercícios de desenho, estruturam a composição. Fragmento a fragmento – desenho a desenho – a chamada big picture, a visão panorâmica, global, é dada pelos arranjos de vários instantes em que o olhar parou e a mão deslizou pelo papel, seguindo as vias do que ao gesto evoca a recordação desse corpo vegetal.
A artista trabalha, como diria Kant, operando uma síntese. O filósofo prussiano, que não gostava de se distrair com a beleza dos textos para não se perder do seu conteúdo, talvez não aderisse excessivamente à sedução destes trabalhos, que por demais o desencaminharia da ideia de árvore. Mas, certamente, reconheceria aqui o exercício essencial dessa síntese. Dizia ele que nós só conhecemos através da experiência. Que é da soma de várias intuições sensíveis (espécie de experiências avulsas do mesmo fenómeno que o nosso cérebro vai processando em afinidades) que sai o conceito de alguma coisa. Esse processo é aqui claramente evidente: Beatriz não regista o momento de cada uma das suas experiências sensíveis. Mas a sua poética é o resultado de uma pluralidade de observações, de uma diversidade de experiências, das quais operou a referida síntese. Eis, agora, as suas árvores, depuradas pela memória e levadas ao essencial. Eis porque nós olhamos para estes trabalhos e caímos na armadilha do desenho, dizendo para nós mesmos: isto são árvores.
Tomemos ainda a síntese da artista para nos determos nos seus modos de representação. O seu trabalho não é feito de uma precisão ou rigor formal que nos dirija o olhar para o objecto, sem nos defrontarmos com os obstáculos da expressão do seu autor. Nem, tão-pouco, esta nos obstaculiza a leitura. Quando a artista abstractiza o desenho, como na série de 18 desenhos, por exemplo, fá-lo apenas como quando olhamos algo familiar a uma distância mais curta.
O padrão mantém--se; mas o conjunto é percepcionado de outro modo.
Nestes trabalhos encontramos, como sempre na obra de Beatriz Horta Correia, um claro domínio do desenho. Reforçamos que é o contorno dos ramos – mais concretos ou mais difusos – ou a fragmentação do visível, operada por essas mesmas linhas, que faz com que nós, por defeito, as assumamos como um valor paisagístico.
À parte a estrutura, a luz, que aí labora em conjunto, sendo temperada pelo jogo das texturas dos diversos brancos, opera a segunda ilusão: a do silêncio e de um tempo parado, envolto no mistério do que não se apresenta claramente definido.
Esta paisagem, em que a quietude é parte integrante da composição, vive, portanto, de uma paleta feita de recursos parcimoniosos: vários brancos, alguns cinzas, raros negros.
Semelhante valor – neste trabalho que, pela intensa luz, pela lisura das superfícies, mais enevoada do que riscada, é também dado numa dimensão pictórica – é suportado pela mesma estrutura de grafite, englobante e equilibrada, que sustenta os brancos.
As linhas são suficientemente fluidas para que percebamos a largueza do gesto. Mas comportam, ainda assim, a vibração necessária para que consigamos perceber a insinuação do acidente no crescimento de um ramo, para que a estilização não seja excessiva e, logo, estéril, demasiado perto de uma geometria que, na sua obra, não tem tido razão de ser.
Sem qualquer acção para além do convite à contemplação, esta é, portanto, uma narrativa do não-dito, um espaço dedicado à reflexão. Não se trata de metáfora, mas de constatação: o branco é uma cor muda, e não é por haver várias tonalidades de maior ou menor transparência que o silêncio é quebrado. Um branco omnipresente, luminoso mas não ofuscante; sedutor, que nos acolhe (que faz com que o reconheçamos e nos sintamos em casa) como um perfume antigo.
Neste ponto, importa agora recuperar a questão do fragmento para falar da construção da memória. A contenção do traçado que podia ser negro mas que se retrai a um cinza melancólico, discreto mas seguro, acentua mais, como já foi referido, a aparente fragilidade do tecido do desenho, como se evocando peças do passado, imagens recolhidas num território impalpável. Partidas no espaço, como no tempo, estas paisagens agigantam-se, depois, pela escala das suas montagens, somando-se no espaço expositivo, rasgando os seus próprios limites e continuando a estória, prolongando o cenário das nossas viagens interiores.
Contribuindo de modo decisivo para a imagem global de introspecção, as folhas intituladas as palavras são como o vento # I e II, fragmentos colados (literalmente construídos sobre colagem de folhas de um livro de poesia), surgem como os únicos elementos de perturbação neste instante.
Se, de certo modo, podemos afirmar que estes trabalhos se apresentam como textos, inscritos numa horizontalidade que lhes dá capacidade de ascensão, mas também numa continuidade narrativa que lhes dá extensão, esta série leva-o mais longe. Nestes trabalhos, os traços acentuam o valor da palavra e do pensamento também como linha, mancha e fragmento, um fragmento mais uma vez unificado pelos traços da paisagem, como um corpo maior e aglutinador do labirinto do sentido. São peças soltas, essas palavras. Apontamentos de cor, de ideias, sensações, referências temporais, desejos. São, por si só, outras paisagens: sempre, solidão, azul, vida, procura, amor, verdade, mais, desaparece, se, quando, sol, noite, paraíso, existência, mistério, tempo, amanhã, futuro, fogo, entrada, olhos, felizes, mar, vento, tristeza, pensamentos, limite, desejos, vida, transformação, indefinido. Quase esperamos que estes vocábulos – os que surgem iluminados – tombem maduros, como frutos.
Encontrando-se vestigialmente sob a velatura de nevoeiro da lembrança, nesta série (em que surge mais uma variável cromática, a da cor do papel dessas folhas) as palavras funcionam num duplo registo de linha e de sentido: integram a composição através do seu corpo físico, da sua expressão riscadora, como folhas ou frutos, sobre as ramagens secas destas árvores invernosas e, como signos, apontando caminhos da memória, sinais de sentidos que se procuram e se retêm. A escolha dessas palavras é significativa e convida-nos a seguir um fio de pensamento que nos dá, contudo, apesar de alguma orientação, a liberdade de criar a nossa própria ficção. Trabalho sem um referente presente, como já foi aqui afirmado, apenas evocado, ele revela também o quanto da memória da palavra é evocação e construção. De um texto – como numa multidão – há uma palavra (como um rosto, uma linha, uma cor ou um ponto de luz) que se destaca. Numa composição, o mesmo se dá num traço, uma dissonância ou qualquer tipo de perturbação, de excesso.
No conjunto destas obras, apetece perguntar para onde cairão aqueles pequenos riscos que compõem as imagens e as palavras. Pequenos fios, como linhas da escrita ou do desenho, como frutos maduros. Como restos de uma costura, de uma conjugação de esforços – Louise Bourgeois dizia que sempre se fascinara com o poder da agulha e da linha: o de juntar o que era separado, de reparar ou suturar o estragado, o ferido – essas linhas tombaram, perdidas no seu momento sazonado. E eis onde, afinal, elas tombaram. Recolhidas, como pés de cerejas ou como o princípio de um alfabeto do desenho, Beatriz Horta Correia, recebeu-as numa taça. Cozidas (não cosidas) num forno, esses fragmentos do desenho metamorfoseados em fios de faiança, repousam agora como parte do mesmo corpo da taça. Brancas, leves, com a mesma cor da neblina que nos envolve em toda estas peças de papel, em todos estes cenários reminiscentes, elas voam para as mãos de Beatriz. E quase a ouvimos dizer, com esse graal sobre as suas palmas abertas: tomai, este é o meu corpo.

Emília Ferreira, Almada, 24 de Fevereiro de 2011


Beatriz Horta Correia ou A LIMPIDEZ DA MATÉRIA
À cerâmica associa-se a ideia de opacidade, matéria densa que quando empregue em recipientes oculta e protege o que contêm. A transparência, o limite da coesão do material, permitindo que a tessitura constituinte dos objectos possa ser observada é o que procura Beatriz Horta Correia. Partindo da construção de delicadas redes cerâmicas, que por vezes se sobrepõem ou surgem depositadas em taças, ao corte cirúrgico das paredes de jarras levado ao limite do (quase) improvável, nestes objectos a ausência acaba por assumir um maior protagonismo que a matéria que neles é deixada. Os efeitos dramáticos de sombras que potenciam permitem (re)criar neles sempre novas identidades, numa capacidade de reinvenção pouco usual. O emprego de papel ou tecidos mergulhados em calda de porcelana e trabalhados de modo a criar uma coesão cuja destruição parece ocorrer só pela respiração do observador, através do uso de luz directa garantem uma transparência que permite recriar os passos da sua criação. Nestes objectos é possível encontrar uma certa citação oriental nas técnicas empregues, mas em nenhuma é mais evidente como no emprego de bagos de arroz para criar texturas de ainda maior transparência, em paredes já quase levadas ao limite.

Alexandre Pais, in Catálogo da exposição “O Poder do Fazer”, Museu Nacional do Azulejo, Lisboa, 2013